Desigualdade e marginalização, a nosso modo de ver, fazem parte dos recusados programas de inclusão e cidadania pluralizada, democracia igualitária, no governo de Dilma Rousseff. Aécio representará esse grupo. Falará da Petrobrás até cair de costas, das poucas empresas rentáveis que escaparam da privatização promovida por FHC. Esquecerá propositadamente a Vale do Rio Doce, as siderúrgicas antes estatais, e o elenco dos bens da nação privatizados naquele período.
Já vamos começar o segundo turno, e os argumentos referentes à “privataria” retornarão, um elenco fabuloso de submissões ao capitalismo tupiniquim caçador de recompensas. FHC, Serra, e a pretensiosa hegemonia de São Paulo, desde Ademar de Barros e tantos mais, voltarão, para ser impostos, com as mesmas propostas contra a distribuição igualitária de renda na federação. Os “injustos benefícios” da casa própria para os empobrecidos, saúde pública melhorada, auxílio para famílias à margem da economia regular, serão o contraponto à discussão sobre a privatização de universidades públicas, e voltará o debate sobre a retomada da proliferação descontrolada de faculdades privadas, a exemplo daquela havida na gestão FHC, até 2002. Sugiro uma leitura para se entender o assunto: James Holston, Cidadania Insurgente.
James Holston oferece uma leitura esclarecedora. Mais de 20 anos lecionando nas universidades de S.Paulo, descreve o “fenômeno” do desenvolvimento da economia industrial, “tour de force” da economia paulistana, enquanto deslinda, como gente de verdade, o povo miúdo constituído de imigrantes que fugiam da pobreza da Europa latina, antes e depois da I Guerra Mundial. Com essa gente, depois acrescida pelas populações nordestinas e asiáticas orientais, construia-se a estrutura urbana de S.Paulo.
Especialmente, a expulsão de trabalhadores e o restantes de migrantes nordestinos, e do resto do Brasil, para as periferias. A política conservadora de São Paulo não pode aceitar que esse grupo conduza as políticas públicas no país. Notadamente, quanto aos pretendidos privilégios repartidos com a sociedade toda; o intento de distribuição de renda levada aos “extremos negativos” dos “improdutivos”, os mais pobres entre os pobres, é insuportável aos políticos servidores do grande capital, na enorme “nação” paulista. Eu, pessoalmente, amo S.Paulo, e até, nos meus devaneios, fico desejando passar os últimos dias de minha velhice gozando da cultura disponível ali. Suas livrarias, seus cinemas fantásticos, seus museus e espaços culturais. Contudo, suas paisagens cinzentas não perturbam. Porém, as humanas são instigantes.
Desde 1950, o movimento de brasileiros na direção das grandes cidades mudou o cenário objetivado pela política. Os grandes avanços da cidadania desde a promulgação da Constituição de 1988 não se dissociam das fraturas sociais que fazem do Brasil um dos campeões mundiais da desigualdade e da violência urbana, informam-nos os historiadores sociais. Quando a cidadania insurgente, essa que vai reclamar nas ruas o direito a transporte, moradia digna, saúde pública com qualidade, escolas verdadeiramente formadoras para o trabalho e a produção em repartição igualitária, nos remetemos às origens da nação moderna que é o Brasil. É em S.Paulo que vamos encontrar o melhor exemplo de diversidade, através das populações formadoras que misturam nossos ancestrais europeus mais recentes e as amostras da gente do norte brasileiro, do centro e do oeste, ainda mais próximas no tempo.
A sociedade civil é o mundo tomado por males reais, coletivos, tão concretos quanto os de ordem econômico-social, expostos no cotidiano da violência urbana, camuflados no falso repúdio e vergonha do grupo autoritário insensível à essência imunda e maligna da miséria, mas que reclama por sua tranquilidade, porque não quer ser incomodada em seu conforto. Como uma sociedade — o país ocupa um lugar mundial entre as cinquenta nações onde a corrupção faz parte do cotidiano cidadão desde o camelô, o guarda de trânsito, ao chefe do legislativo — pode protestar, exigindo dos governantes o combate abstrato da corrupção?
“Corruptio optimi pessima est”, a expressão latina diz de forma breve uma grande verdade: “a corrupção dos melhores é a pior que existe” (Leonardo Boff). Vejamos, então, porque há um resíduo testemunhal da ética tomando as ruas das metrópoles, aos milhares. Somado no país inteiro, superou a casa do milhão de manifestantes num só dia. E cantava: “sou brasileiro, com muito orgulho”… Posso observar tudo isso na minha velhice.
Ali, podemos ver que a maioria dos brasileiros foi privada de direitos políticos além das urnas, excluída da propriedade fundiária legal, forçada a condições de habitação segregadas e alienada da lei. Enquanto isso, trabalhava-se para inserir o Brasil na listagem das nações do mundo desenvolvido. E o que é o desenvolvimento senão inserção social completa, inclusão, igualdade na democracia produtiva e gozo dos bens sociais? Foi em S.Paulo que se verificou a mais violenta repressão do Estado, no levante de junho, em 2013.
Os mitos recorrentes sobre a formação do país, também presentes ou subentendidos na manutenção de fronteiras sociais porosas, entre iguais e desiguais, o legal para a sociedade privilegiada e o ilegal para os insurgentes, aqueles que reclamam a partilha dos bens econômicos e sociais; sociedade que tem contribuído decisivamente para a reprodução da desigualdade no Brasil. Então, o que é chocante, impactante, nas manifestações pacíficas de 2013? É o enfoque invertido sobre os reais problemas das urbes e do país, que políticos escamoteiam, enquanto se perpetuam e enriquecem nos cargos públicos? Repercutirá no segundo turno destas eleições? Até agora o que vimos foi a forte reação do autoritarismo social, nos debates dos candidatos que agora apoiarão Aécio Neves.
A partir dos anos 1950, porém, os brasileiros começaram um movimento em direção às grandes cidades e construíram periferias urbanas, o que ensejou a formulação de uma cidadania insurgente desestabilizadora do regime histórico de opressão, por meio de lutas por moradia, terra e vida digna. Ao longo dessa questão, também observamos as razões pelas quais a democracia resultante dessas lutas ainda permanecem, emaranhadas no sistema. São razões entrincheirados na desigualdade absurda.
As vítimas não servem ao autoritarismo ideológico moralista da sociedade autoritária contemporânea, inclinada a defender privilégios para quem transita nas ilhas de conforto econômico, consumindo lazer de luxo, ocupando postos de trabalho com alta renda, condenando as passeatas insurgentes, enquanto finge condenar a corrupção concreta – observada em ritmo galopante. As vítimas falam e reclamam de uma democracia abstrata, de privilégios econômicos não partilhados, enquanto é negado o direito às maiorias em situação clara de desigualdade.
A manipulação da psicologia subliminar sobre o medo do poder das massas; do repulsivo e nojento, ganha espaço nas referências contra a violência nas periferias urbanas, lugares onde se localizam a pobreza indigente e as mais profundas desigualdades, não funcionou nestas eleições. Erro fundamental, igualando insurgência como manifestação “black bloc”. Mas quem não se interessa por “slogans” falso moralistas emitidos por mentes conservadoras ou fundamentalistas que dominam a sociedade hedonista, que detesta ser incomodada em seus privilégios, que vêm às urnas?
Derval Dasilio